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A transição energética brasileira carrega uma contradição curiosa

De um lado, o país é reconhecido como potência renovável, com cerca de 90% da matriz elétrica proveniente de fontes limpas


*Rodrigo Ferreira, Head de tecnologia, produto, dados e inovação da Evolua Energia

A transição energética brasileira carrega uma contradição curiosa. De um lado, o país é reconhecido como potência renovável, com cerca de 90% da matriz elétrica proveniente de fontes limpas. A hidráulica, ainda dominante, responde por metade da capacidade instalada, a eólica soma cerca de 15% e a solar já ultrapassa 20% (dividida entre geração distribuída e usinas centralizadas). Biomassa e PCHs completam a base renovável. De outro, segue preso a barreiras que impedem a consolidação dessa liderança e o aproveitamento de oportunidades estratégicas que vão muito além da geração. É como se estivéssemos diante da linha de chegada, mas sem a decisão política e econômica necessária para cruzá-la.

Grande parte desse impasse nasce no ambiente regulatório. Marcos legais confusos, licenciamento moroso e tributação fragmentada tornam o setor um labirinto desestimulante. Não surpreende que investidores internacionais recuem diante de tantas incertezas: falta previsibilidade. Quando a burocracia consome mais tempo que a própria construção de um parque eólico ou solar, como destacou a Global Renewables Alliance, o país envia sinais contraditórios ao mercado.

Outro gargalo está na infraestrutura de transmissão e nas restrições operacionais de um sistema cada vez mais complexo e descentralizado. Linhas insuficientes transformam o Nordeste em polo abundante de energia solar e eólica, mas incapaz de escoar plenamente sua riqueza para o restante do território, evidenciando falhas no planejamento. O avanço veloz da solar, em especial, intensifica esse desafio: nos horários de pico, a produção chega a superar a demanda local, mas sem rede suficiente para transportar o excedente. Nesse contexto, cresce a ocorrência do curtailment — quando a geração limpa é interrompida para preservar a estabilidade do sistema.

Essa realidade também expõe a sazonalidade e a intermitência da solar. Enquanto ao meio-dia a geração atinge seu pico, em outros momentos do dia o sistema precisa acionar fontes complementares, exigindo flexibilidade e planejamento constante. Ao longo do ano, a irradiação varia conforme as estações, o que amplia a complexidade de operação. Mais do que manutenção adequada, o que garante eficiência é a adoção de sinais de preço corretos (estrutura tarifária) que reflitam escassez e abundância de energia em cada hora, além do estímulo ao uso de baterias e sistemas de armazenamento (BESS) para o chamado time shift — deslocando a energia gerada no horário solar para os momentos de maior demanda noturna. Essas soluções aumentam a confiabilidade do sistema e reduzem o risco de desperdício.

O financiamento também exige atenção. Embora iniciativas como o Programa de Integração de Energias Renováveis representem avanços, ainda faltam instrumentos capazes de dar escala e segurança a projetos de longo prazo. Sem crédito acessível, pequenas e médias empresas — peças-chave para democratizar a energia solar e ampliar a geração distribuída — continuam em posição secundária, quando poderiam ser protagonistas.

Há ainda um obstáculo silencioso: a falta de conscientização social. Parte dos consumidores enxerga a energia limpa apenas como custo adicional, e não como ativo estratégico de retorno econômico, ambiental e até reputacional. Essa percepção reduz a velocidade necessária para que seja vista como diferencial competitivo, e não apenas como forma de economia na conta de luz. Alterar esse imaginário é tão essencial quanto erguer novas linhas de transmissão ou modernizar a regulação, porque só assim será possível transformar o potencial já existente em liderança global.

Um futuro que pede coragem para sair do papel

Apesar dos entraves, o Brasil vive um momento fértil de oportunidades. A abertura do Mercado Livre de Energia, aliada ao avanço das tecnologias de armazenamento, cria cenário promissor. O que falta é coordenação efetiva entre governo e setor privado para transformar essas oportunidades em escala prática, com inovação tecnológica e políticas consistentes caminhando lado a lado.

É justamente nesse ponto que reside a chave do futuro. Se o Brasil quiser deixar de ser visto apenas como “gigante adormecido” e consolidar-se como liderança climática global, precisa assumir o risco de inovar. Isso implica investir em pesquisa, fortalecer a indústria nacional de equipamentos e reduzir a dependência de tecnologias importadas. O país não pode se contentar em apenas adotar soluções externas; é hora de produzir conhecimento e exportar inovação.

A energia renovável já é realidade consolidada na matriz elétrica, com mais de 90% de participação de fontes limpas. O desafio agora não é só manter esse diferencial, mas transformá-lo em vantagem competitiva. Isso passa por usar o potencial solar e eólico para atrair indústrias intensivas em energia, expandir a exportação de hidrogênio verde e derivados, e desenvolver mercados de flexibilidade e armazenamento que garantam segurança ao sistema.

Se conseguirmos alinhar regulação moderna, infraestrutura eficiente, mecanismos financeiros robustos e soluções tecnológicas compatíveis com o crescimento renovável, o Brasil terá não apenas uma matriz sustentável, mas também a oportunidade de se tornar referência mundial em inovação e economia verde. O dilema é claro: permanecer como fornecedor de recursos primários ou assumir de vez o protagonismo global como potência limpa.

Grazielle Franca <grazielle.franca@motim.cc>

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