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O governo e a indústria automotiva

Associação das fabricantes de veículos dividiu a atenção da imprensa com ministro do Meio Ambiente sem objetivo aparente


Giovanna Riato

O governo e a indústria automotiva sempre andaram de mãos dadas, ainda que em determinados momentos da história ambos tenham vindo a público desmentir o relacionamento. Se, por um lado, o poder público precisa exalar isonomia para não denotar predileção por um ou outro interlocutor do setor privado, pelo outro as empresas sempre se portaram como independentes em suas lutas e aspirações. Sabemos todos, entretanto, que por trás das aparências estão juntos no baile industrial.

Acontece que nos últimos três anos o poder público e as montadoras conversaram menos do que o normal e, uma vez considerando o diálogo como principal combustível de relacionamentos duradouros, podemos concluir que algo ia mal na parceria. Nessas circunstâncias, alguém precisa ceder às pressões - seja as do orgulho ou aquelas da saudade - e dar o primeiro passo. As montadoras reclamaram a frieza da distância nos reencontros. O governo, em defesa, alegou estar ocupado com as mazelas do vírus.

Na última terça-feira, 7, no entanto, as partes resolveram deixar o hiato para trás e se aproximaram novamente. E como é comum nas reconciliações o fervor das emoções se sobrepor à voz da razão, a Anfavea foi além do costume e se permitiu abrir um espaço inédito em sua coletiva mensal de resultados para que o ministro Joaquim Leite, do Meio Ambiente, pudesse mais do que apresentar a posição do governo sobre assuntos comuns à indústria, mas também aproveitar a oportunidade para mandar um recado ao eleitor.

Isoladamente, a presença do líder da pasta pouco significa. O que chama a atenção é o contexto: em mais de uma década acompanhando os encontros da Anfavea com jornalistas, nunca vi a entidade de classe dar qualquer espaço para um discurso político - ainda que isso tenha acontecido à revelia da propria organização, que talvez não calculou que a participação de Leite na coletiva de imprensa sem um anúncio claro a fazer abriria margem para isso.

Pelo contrário, o esforço sempre foi o de seguir a cartilha da imparcialidade ainda que, nos bastidores, a interlocução com Brasília se desenvolva, como é natural. Como diz o ditado sobre a mulher de César: não basta ser honesta, precisa parecer honesta. Nesse caso, não basta ser isenta, precisa parecer isenta.

Por isso, elaboro a seguir alguns aspectos que estão entre causas e consequências do recente estreitamento do diálogo entre o governo federal e a Anfavea:

- Presença do ministro foi pouco calculada

Mais de uma fonte ligada à Anfavea apontam que não houve um grande desenho estratégico para a participação do ministro na coletiva de imprensa da associação. A ideia teria vindo da própria liderança da entidade, chapa que assumiu a gestão no início de maio e, desde então, tem transitado muito em Brasília. 

O objetivo da participação seria aproveitar o Dia Mundial do Meio Ambiente, que aconteceu em 5 junho, para mostrar o prestígio da entidade com a participação do ministro. Antes de Joaquim Leite, até mesmo a presença de Paulo Guedes, ministro da Economia, chegou a ser cogitada.

Nos últimos anos, a associação fez questão de trazer mais do que o balanço dos números da indústria em suas coletivas de imprensa. Normalmente, a Anfavea apresenta estudos, levantamentos e, recentemente, trouxe até outro nome do governo como convidado: o presidente da Senatran, Secretaria Nacional de Trânsito, Frederico de Moura Carneiro. A diferença é que, nesse caso, tratava-se de um funcionário público de perfil mais técnico.

A verdade pouco lisonjeira é que o tiro saiu pela culatra. No fim das contas, a presença de um ministro sem qualquer anúncio ou discurso objetivo para o setor automotivo só levantou questionamentos sobre as razões para a aproximação.

- Prestígio com o público, moral com o governo

Além do prestígio com a imprensa e a opinião pública, a Anfavea pode ter mirado em um ganho secundário ao convidar o ministro do Meio Ambiente para sua coletiva de imprensa: o relacionamento dentro do próprio governo.

Ainda que a associação aponte ter um bom trânsito com a atual gestão, diversas fontes relatam que, nos últimos três anos, Brasília não manteve diálogo fluente com empresas – algo que não é exclusivo do setor automotivo, mas afeta qualquer segmento.

O presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite, tem reforçado que não há intenção de pedir subsídios, mas grande interesse em colaborar com o desenho de políticas de longo prazo e reformas que impulsionem a economia e, consequentemente, o segmento.

Lucas de Amaral Afonso, doutorando em sociologia e consultor em desenvolvimento territorial, aponta que, longe de ser um movimento estabanado, a aproximação com o governo de Jair Bolsonaro pode ser essencial.

“Entre os candidatos com mais chances de vencer a eleição, a chapa composta por Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin (PT), pelo histórico, abre mais trânsito para a indústria automotiva. Já o governo Jair Bolsonaro manteve as portas mais fechadas nos últimos anos – e a indústria precisa evitar que assim permaneça caso ele seja reeleito”, observa o especialista.

- Posse da Anfavea em Brasília foi o primeiro passo

A costura de um diálogo mais estreito com o governo federal pela Anfavea começou já no início de maio, quando Márcio de Lima Leite assumiu a presidência da instituição. Além da tradicional cerimônia de posse em São Paulo, a associação fez um evento equivalente em Brasília, que foi avaliado internamente pela Anfavea como um sucesso. "Além do Paulo Guedes [da Economia], outros dois ministros participaram, tivemos o poder legislativo, de quem somos distantes, e também o segundo e o terceiro escalão do governo, que é com quem de fato negociamos", disse uma fonte, na ocasião.

Desde então, a visão é de que as autoridades têm sido mais receptivas às discussões sobre o setor automotivo. Ainda assim, para além das minhas impressões e das intenções da Anfavea, a participação do ministro na coletiva foge da liturgia da entidade - algo observado, inclusive, por outras entidades de classe do segmento. 

“É normal que as entidades e indústrias se aproximem dos candidatos com mais chance de ganhar a eleição nesse período para colocar suas pautas na mesa, que poderão ser incluídas nos planos de governo. Agora, é curioso esse diálogo público”, analisou uma fontes com forte atuação no setor.

- O que diriam as matrizes?

A especialista lembra, inclusive, que caso ganhem proporção, ações como essa podem ressoar negativamente nas matrizes das organizações associadas à Anfavea. Vale lembrar que a entidade representa 26 empresas e, portanto, chegar a um consenso sobre qualquer decisão ou posicionamento é um desafio e tanto. 

“Multinacionais normalmente querem distância de qualquer movimento que lembre um posicionamento político”, lembra a mesma fonte. E, nunca é demais reforçar, que o objetivo de qualquer organização é ter condições favoráveis à sua atividade independentemente de quem esteja no poder e, portanto, há poucos ganhos em se aproximar demais de um governo específico.

- Vade-retro, Elon Musk

Lucas de Amaral Afonso também destaca mais um elemento que compõe o cenário da indústria automotiva e motiva diálogo mais íntimo com o governo federal: a concorrência com novas empresas. A chinesa Great Wall Motors, por exemplo, prepara o início de sua operação local focada em elétricos e híbridos e, portanto, com uma agenda própria, que pode ou não pode convergir com a da Anfavea.

Há concorrentes mas distantes, mas igualmente ameaçadores, como a Tesla. No fim de maio, causou rebuliço uma reunião entre o bilionário CEO da montadora, Elon Musk, e o presidente Jair Bolsonaro. O foco da conversa teria sido tecnologia para levar conectividade a escolas da Amazônia e, portanto, passou longe do setor automotivo.

Ainda assim, diferentemente do que acontece com as lideranças de indústria já estabelecidas no Brasil, o líder da Tesla recebeu extrema simpatia do governante, que chegou a afirmar que o anúncio da compra do Twitter pelo homem mais rico do mundo seria um “sopro de esperança” e entregou uma medalha da Ordem do Mérito da Defesa ao executivo, que sequer tem atuação relevante no Brasil com suas empresas.

Claro que, neste momento, é um tiro no escuro dizer que haveria qualquer interesse da Tesla em se estabelecer no Brasil, não há indício desse movimento. De qualquer forma, a indústria automotiva dá sinais de que pretende marcar território. É a velha máxima: melhor prevenir do que remediar.

 

Giovanna Riato é editora executiva de Automotive Business. Este artigo contou com a colaboração do repórter Bruno de Oliveira.

*Este texto traz a opinião da autora e não expressa, necessariamente, o posicionamento editorial de Automtive Business.

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