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A Empresa Familiar: Mitos E Verdades

Quando a empresa familiar desenvolve condições estruturais e comportamentais para adaptar-se aos avanços econômicos e tecnológicos, mantendo-se competitiva e sustentável, continua sendo um ótimo modelo empresarial


Características empreendedoras associadas com épocas de crise econômica, historicamente, são as maiores responsáveis pela estruturação do negócio próprio, o qual alicerça o conceito de empresa familiar.  No Brasil, o desenvolvimento destas empresas foi ainda fortemente influenciado pela cultura dos imigrantes que, frente ao desconhecido e na tentativa de protegerem-se mutuamente, fomentava a união dos membros da família para gerar de modo autossuficiente capital e força de trabalho. Sob uma forte determinação pessoal ou de uma liderança impositiva, autoconfiança elevada e muita vontade de progredir os familiares se associam para trabalhar com mais afinco, gerando negócios e marcas sob a hegemonia familiar. Tais negócios ao se consolidarem no mercado foram resultando em pequenas empresas ou grandes conglomerados que se disseminam pelos mais variados segmentos.
Denominamos, assim, empresa familiar a organização empresarial que tem sua origem e sua história vinculadas a uma mesma família, no mínimo por duas gerações, sendo controlada ou administrada pelos membros desta família. Desse modo, não incluímos nesse conceito aquelas empresas em que a família é apenas um simples investidor ou aquelas em que o fundador não deixa herdeiros consanguíneos a frente do negócio (filhos, netos, irmãos, sobrinhos, primos).
O traço marcante da empresa familiar é um sistema de lealdade e/ou submissão direcionado para a manutenção do negócio.  Esta união e mesma visão da realidade tendem a ser fortalecidas nos fundadores pelo parentesco, em geral, em primeiro grau, onde sob um tronco familiar comum, liderado por avós ou pais, são estabelecidos fortes laços afetivos, de confiança e lealdade. Talvez por isso, os fundadores compartilhem objetivos e princípios que levam a coesão em oposição a emergência de conflitos e divergências diante do negócio.
No momento da transição entre gerações, em especial da primeira para a segunda, os fortes laços afetivos e hierárquicos cultivados na educação dos fundadores, em geral, estão mais frouxos. Por consequência, nas gerações que sucedem os fundadores há maior diversidade de posicionamentos, valores e atitudes influenciando a dinâmica do negócio, já não mais considerando as prioridades familiares como elemento principal na tomada de decisões. Além das próprias contingências do mercado em transformação, os interesses pessoais e as características de cada membro da família manifestam-se com intensidade e relevância até então não existentes, dificultando o consenso.
Embora a questão sucessória seja um ponto muito crítico, uma empresa só se transforma de fato em uma empresa familiar quando consegue operacionalizar o deslocamento do controle para a segunda geração da família. No entanto, há estatísticas que apontam que penas três em cada dez empresas familiares conseguem vencer esta etapa e somente metade dessas chegarão à terceira geração.
A presença familiar forte visível na primeira geração, que tanto pode promover a submissão quanto a solidariedade e a parceria entre os membros da família,pode não mais se reproduzir ao longo do tempo, influenciando a dispersão de foco e de objetivos.Nesse sentido, muitas vezes, os fundadores, motivados pela devoção ao negócio e pela necessidade e desejo de fazê-lo progredir contribuem, involuntariamente, para a dispersão familiar. Isso porque, envolvidos com a empresa, investiram eles mesmos pouco tempo e disposição para o contato com seus próprios filhos e descendentes, dando início a um distanciamento afetivo e relacional perceptível nas demandas oriundas dos processos de sucessão na empresa familiar. Pouco identificadas com os valores e o estilo de vida da geração precedente, as novas gerações nem sempre manifestam o mesmo interesse e motivação pelo negócio que tanto empolgou os fundadores.
É esperado, portanto, que os momentos de transição de cargos tenham alto potencial para a emergência de conflitos e fragmentações do negócio, tão bem reconhecidas no senso comum pelo ditado "pai rico, filho nobre, neto pobre". Por outro lado, tais ameaças podem ser convertidas em oportunidades de reavaliação da gestão da empresa, das limitações e possibilidades familiares para a continuidade do negócio e das demandas por mudanças.
Apesar dos estigmas que acompanham a empresa familiar, sabemos que esse modelo empresarial tem relevância e ocupa um espaço considerável em economias industrializadas e em desenvolvimento. Em países desenvolvidos as empresas familiares tradicionais estão centradas naquelas de pequeno e médio porte, ao contrário dos países emergentes, onde tais empresas se encontram em todos os níveis do setor produtivo. Na empresa familiar clássica, tradicionalmente, o capital é fechado assim como o acesso às questões administrativas e financeiras, estando os negócios e a gestão sob o domínio familiar total. Mas esse modelo tradicional, disputa espaço com a empresa familiar híbrida, na qual embora a família detenha o controle, o capital é aberto, havendo também maior transparência e participação de profissionais não familiares na administração do negócio. Há ainda outro modelo empresarial denominado "de influência familiar", no qual há acionistas e a família se mantém afastada da administração cotidiana, embora mantenha forte influência estratégica por meio da participação acionária majoritária ou substancial.
Ainda que a empresa familiar tradicional tenha muitos exemplos bem sucedidos paira sobre esse modelo de gestão a expectativa que cedo ou tarde ela será vitima de seu próprio êxito, especialmente diante das demandas estruturais impostas pelo seu crescimento no mercado. É inegável que o modelo de gestão familiar tradicional tenha problemáticas intrínsecas, especialmente vinculadas à questões como a sucessão, a gestão profissional e a abertura de capital.Diante disso, mitos e verdades se revelam e poderiam ser explorados na condução das inevitáveis mudanças que acompanham os processos de crescimento da empresa familiar. Alguns deles são apontados a seguir:
1. Os laços que uniram os fundadores da empresa familiar não são hereditários, não passam automaticamente para a geração seguinte, como muitas vezes é esperado. Ao contrário até, a "sociedade"realizada para o negócio pode fomentar disputas e competições veladas entre os próprios fundadores, que irão ser sentidas e acompanhadas pelos seus descendentes. Pequenos comentários sobre bens adquiridos, sobre o estilo de vida praticado pelos outros sócios-familiares, sobre o modo como trabalham ou se divertem, escutados reiteradamente pelas gerações seguintes podem levar ao desenvolvimento de antipatias e rixas com esses familiares, especialmente, com o intuito de defender os próprios pais. Portanto, a convivência harmoniosa entre os membros da família deve ser estimulada contínua e naturalmente como fazem as famílias em geral, de preferência longe dos assuntos de negócios.
2. O interesse pela empresa deve ser despertado nas novas gerações sem pressões ou expectativas fantasiosas. Assim como os fundadores um dia tiveram o desejo de criar esse negócio, seus herdeiros podem desejar construir sua própria trajetória profissional, sem que isso represente uma afronta. As empresas funcionam melhor quando não destroem a família e as famílias permanecem mais unidas quando não centram todo o seu relacionamento na empresa.  Pode não haver nenhuma desvantagem para os negócios da família se alguns de seus membros optarem por investir ou iniciar atividades diferentes das já existentes, gerando novos negócios para herdeiros que têm certeza do que desejam, buscando sua própria realização.
3. Não é incomum que os pais mantenham uma secreta esperança de que seus filhos ingressem na empresa e ocupem o seu posto na hierarquia máxima. Porém, nem sempre o número de cargos equivale ao número de herdeiros, podendo esse desejo se tornar uma grande armadilha para as novas gerações, quando não respeitadas as característica de cada membro.  Quando há um interesse genuíno por assumir os negócios da família, a gradual assunção aos cargos é vista como uma conquista pelos herdeiros, devendo eles próprios se responsabilizar por desenvolverem-se e progredirem na hierarquia organizacional.
4. Há nos negócios outra hierarquia a ser respeitada que quase sempre encontra dificuldades para sobrepor-se a hierarquia familiar. Profissionalizar a empresa familiar não significa exatamente dispensar os membros da família e contratar profissionais no mercado. Refere-se muito mais à condução da gestão do negócio de modo formal, respeitando as políticas inerentes ao contexto profissional. Com isso, a interferência da intimidade dos laços familiares pode ser minimizada, evitando que a empresa se torne a extensão do lar. Para tanto, a fixação de salários e benefícios para cada membro da família de acordo com a estrutura da empresa e com a real contribuição da pessoa para o seu funcionamento e não de acordo com as demandas de cada um é uma das primeiras medidas a serem tomadas. Não importa o patrimônio acumulado pela família ou pela empresa como um todo, apenas os membros que efetivamente atuam no negócio devem ser remunerados pelos seus serviços. Aos demais familiares que não trabalham na empresa, participações nos lucros ou gratificações espontâneas retiradas diretamente dos ganhos pessoais do familiar que atua no negócio são alternativas mais justas para o repasse de valores financeiros.
5. O equilíbrio entre os interesses da família e os da empresa baseia-se muito mais em questões afetivas e emocionais do que gerenciais e econômicas. Em geral, os mesmos padrões de relacionamento, saudáveis ou não, vistos no ambiente doméstico tendem a se reproduzir no contexto empresarial entre os familiares, quase sempre de modo inconscientes. Isso muitas vezes é fonte de grave estresse, especialmente se esses fatos não puderem ser abertamente abordados. Muitos fundadores exigem que seus herdeiros sejam exemplo dentro da empresa, cobrando-lhes além do que podem oferecer. É como se algum deslize do parente próximo, em geral filhos, representasse seu fracasso pessoal como pai ou mãe. Ou ao contrário, há uma necessidade tão intensa de demonstrar isonomia no tratamento aos herdeiros em relação aos demais colaboradores que os membros da família são tratados com excessiva severidade e meticulosidade. Tais aspectos deveriam sempre ser reconhecidos com franqueza e adequadamente trabalhados por todos os envolvidos. Isso, muitas vezes, implica a necessidade de ajuda terapêutica para resolução dessas questões.
6. Os sucessores devem também estar abertos para reconhecerem o que os sucedidos têm para lhes ensinar. Não é por serem mais jovens e talvez mais preparados técnica e academicamente que os herdeiros podem se considerar conhecedores do negócio a ponto de tudo querer modificar. A empresa familiar assim o é porque se fundamente em uma cultura própria, a qual imprimiu identidade ao negócio. Recuperar a história e a filosofia do negócio antes de planejar novas diretrizes é sempre um ato de sabedoria frente ao mercado já conquistado.
7. E por fim, o desejo de manter as coisas "em família" ou o temor de perder o controle sobre o patrimônio ou perder o afeto dos familiares não deve de modo algum ser o fator decisivo para se optar pela gestão familiar.
É certo que os mitos em torno da empresa familiar nem sempre retratam a realidade, acabando por estimular o enfrentamento inadequado das problemáticas encontradas. Há vantagens que a empresa familiar conhece e pode resgatar frente aos desafios da expansão e crescimento, tais como: reputação e relações no mercado, onde o tradicional nome da família fornece alavancagem aos novos investimentos; lealdade dos empregados vinculada à pessoas concretas e não a objetivos impessoais, resultando em maior comprometimento e confiança; parcerias estabelecidas entre os acionistas que transcendem o "jogo" de negócios, podendo ser um forte aliado em situações de crise. Assim, quando a empresa familiar desenvolve condições estruturais e comportamentais para adaptar-se aos avanços econômicos e tecnológicos, mantendo-se competitiva e sustentável, continua sendo um ótimo modelo empresarial. A continuidade sucessória e as estratégias para evitar atos contrários ao interesse social da empresa podem ser planejadas por meio da perícia técnica (administrativa, financeira e interpessoal) e da boa vontade dos envolvidos.

A Empresa Familiar:  Mitos E Verdades
Psicóloga/Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas, Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes. Doutoranda em Psicologia/PUCRS, Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS, Especialista em Gestão Empresarial/FGV, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS e Psicopatologia do Bebê/PARIS XIII.      
Fone: (51) 8188.0733 / tarciad@gmail.com


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