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O conceito de resíduo zero pode parecer inalcançável

No entanto, mais do que uma meta absoluta, trata-se de uma abordagem sistêmica que pode, e deve, guiar o país na construção de um novo modelo


Por Fernando Beltrame, CEO da Eccaplan e especialista em Net Zero

Durante décadas, o Brasil conviveu com uma gestão de resíduos pautada na lógica da coleta e descarte, frequentemente associada a aterros sanitários, lixões e soluções paliativas. Ainda hoje, mais de três mil municípios brasileiros destinam seus resíduos de maneira inadequada, muitos deles em áreas sem qualquer controle ambiental. Frente a esse cenário, o conceito de “resíduo zero” pode, à primeira vista, parecer inalcançável. No entanto, mais do que uma meta absoluta, trata-se de uma abordagem sistêmica que pode, e deve, guiar o país na construção de um novo modelo de desenvolvimento.

O conceito de resíduo zero não se limita à eliminação total dos resíduos, algo que, no curto prazo, é praticamente inviável mesmo nas economias mais avançadas. Ele propõe a mudança estrutural nos modos de produção e consumo, priorizando a redução na origem, o redesenho de produtos, a reutilização, a compostagem e a reciclagem de materiais. Apenas os rejeitos finais, que não possuem viabilidade técnica ou econômica para reaproveitamento, devem ser encaminhados à disposição adequada.

Ao observarmos os dados brasileiros, a urgência dessa transformação é evidente. Em 2022, o país gerou aproximadamente 81,8 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, com uma taxa de coleta de 93%. Contudo, menos de 4% desse total foi efetivamente reciclado. O índice de reciclagem de plásticos, por exemplo, gira em torno de 1,2%, o que nos coloca entre os países com pior desempenho nesse aspecto. Enquanto isso, materiais como o alumínio alcançam taxas superiores a 98% de reaproveitamento, demonstrando que, quando há viabilidade econômica e estrutura adequada, resultados expressivos são possíveis.

Esses números revelam não apenas a deficiência na coleta seletiva e na reciclagem, mas, principalmente, a ineficiência do atual modelo baseado na extração, produção, consumo e descarte. O custo desse sistema ultrapassa o aspecto ambiental: a degradação de ecossistemas, a emissão de gases de efeito estufa, a perda de recursos e a sobrecarga nos sistemas públicos de limpeza urbana geram um ciclo de prejuízos econômicos e sociais.

A boa notícia é que as soluções estão ao alcance. O Brasil possui instrumentos legais e diretrizes claras, como a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que estabelece a responsabilidade compartilhada entre consumidores, empresas e governos, e define a hierarquia de gestão de resíduos, priorizando não geração, redução, reutilização, reciclagem e, apenas em último caso, a disposição final. No entanto, a aplicação da lei é desigual, e muitos municípios ainda carecem de estrutura, recursos e capacitação técnica para cumprir essas diretrizes. Nesse contexto, o conceito de resíduo zero surge como um norte para políticas públicas, estratégias corporativas e iniciativas comunitárias. Sua aplicação passa necessariamente por três pilares interdependentes: inovação tecnológica, educação e inclusão socioeconômica.

No campo tecnológico, é fundamental investir em soluções para o reaproveitamento de resíduos orgânicos, que representam cerca de 50% do total gerado nos domicílios brasileiros. Sistemas de compostagem, biodigestores e outras tecnologias de valorização orgânica podem reduzir drasticamente o volume de resíduos destinados a aterros e ainda gerar subprodutos, como adubo e biogás. Paralelamente, é preciso ampliar o alcance da coleta seletiva, com investimentos em infraestrutura de triagem e logística reversa, especialmente para resíduos como vidro, papel e plásticos complexos.

É importante ressaltar que o modelo de resíduo zero não depende apenas de ações isoladas. Ele requer uma reestruturação das cadeias produtivas, com a adoção de princípios de economia circular. Nesse sentido, o envolvimento do setor produtivo é determinante. Empresas de diversos setores, como alimentos, embalagens e construção civil, têm papel estratégico no desenvolvimento de novos materiais, no redesenho de embalagens e na criação de produtos com maior durabilidade e reaproveitamento.

O Brasil dispõe de potencial único para se destacar nesse contexto. A diversidade biológica e os vastos recursos naturais oferecem condições favoráveis para a implementação de modelos circulares e sistemas de reaproveitamento orgânico. Além disso, o país já possui marcos regulatórios e iniciativas locais promissoras, que podem servir de base para uma expansão nacional.

Resíduo zero não é um conceito teórico distante, tampouco um privilégio restrito a países desenvolvidos. Trata-se de uma resposta necessária e viável aos desafios ambientais e sociais do presente. Com integração entre tecnologia, inclusão social e políticas públicas eficientes, o Brasil tem todas as condições de liderar uma transformação profunda na forma como produz, consome e descarta.

Encarar o resíduo zero como utopia é, na verdade, um sinal de resistência a mudanças que já estão em curso globalmente. A verdadeira utopia seria acreditar que o modelo atual, marcado pelo desperdício e pela exclusão, pode sustentar o desenvolvimento por muito mais tempo. A transição é inevitável. E quanto antes iniciarmos esse percurso, maiores serão os benefícios ambientais, econômicos e sociais para o país.

Fernando Beltrame é mestre pela USP, engenheiro pela Unicamp e CEO da Eccaplan. Com mais de 20 anos de experiência em projetos de consultoria, sustentabilidade e estratégia Net Zero, já atuou em diferentes eventos e iniciativas como a COP18, Rio+20 e fóruns mundiais

Thierre Silva <thierre@moaracomunicacao.com.br>

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