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Carro flex ainda levanta muitas questões em relação a sua importância estratégia para o país

Questões sobre emissões de ponta a ponta e as alternativas para o uso do etanol reforçam como a solução pode ser estratégica para o Brasil


Fernando Miragaya

Mesmo com duas décadas nas costas, o carro flex ainda levanta muitas questões em relação a sua importância estratégia para o país. Afinal, ele polui menos que um elétrico se formos considerar toda a cadeia? É uma alternativa viável apenas para o Brasil ou tem potencial global?

Reunimos estas e outras dúvidas em mais uma reportagem da série da Automotive Business sobre os 20 Anos do Carro Flex. E trazemos respostas de diferentes especialistas do setor.

1- O carro flex, de fato, emite menos?

O grande Fla-Flu em termos de descarbonização está nesta questão. Afinal, o motor flex polui menos, mesmo comparado a um veículo híbrido ou 100% elétrico?

A resposta é… depende. Se o carro for abastecido só com etanol e for levado em consideração o famoso do poço à roda, o flex vai impactar menos o meio ambiente. Isso porque todo o ciclo de produção do álcool emite menos CO2 e ainda é renovável.

"Claro que tudo depende de um contexto detalhado. Mas se fomos falar do ciclo do poço à roda, até aquele 27% de etanol que está na gasolina fará o carro emitir menos que um zero combustão", destaca o engenheiro Erwin Franieck, diretor-presidente do Instituto SAE 4Mobility. 

Isso porque o etanol tem menor nível de emissões de poluentes. Além disso, a planta da cana-de-açúcar, do qual o álcool combustível é extraído, absorve parte do CO2. Por isso é apontado como um combustível "renovável".

"Quando se olha um todo, não só a queima mas o consumo de CO2 pela planta e a reposição de oxigênio, o ciclo do carro a álcool se fecha”, observa Paulo César Pêgas, doutor em engenharia mecânica e diretor-presidente do Instituto Zero Morte.

Nesta comparação, entra na conta dos EVS e híbridos as baterias dos motores elétricos. A extração dos materiais usados nas peças, por si só, resulta em emissão de CO2, além do impacto ambiental da atividade. 

Se a referência for o carro elétrico europeu, então, ainda é levado em consideração a matriz energética do continente. Majoritariamente proveniente de termelétricas movidas a carvão.

2- O flex é uma solução viável para o Brasil no longo prazo?

Para analistas de mercado e engenheiros, o flex é uma solução que não deveria ser apenas importante para o Brasil, mas sim globalmente. Isso porque é uma tecnologia que já está pronta e que pode agregar eficiência energética em tempos de metas de emissões cada vez mais severas mundo afora, sem a necessidade de altos investimentos que a eletrificação demanda.

Os especialistas, inclusive, lembram que o investimento do Brasil no etanol e, posteriormente, no motor flex comprovam a viabilidade do sistema. Mesmo com as desconfianças na época do ProÁlcool, nos anos 1970, e no próprio sistema bicombustível, nos anos 2000.

“Quando o Brasil desenvolveu um combustível alternativo, ninguém apostava nada. Mas o etanol provou ser viável e chegou a representar 98% do mercado. Depois, com as normas de emissões veiculares, optou-se por outra tecnologia puramente brasileira que deu ao consumidor final o poder de escolha”, enaltece o consultor Paulo Roberto Garbossa, da ADK Automotive. 

Até o termo "jabuticaba", apontado para o flex, é refutado. Erwin, da SAE e que trabalhou no desenvolvimento do primeiro motor flex, da Bosch, lembra que o mesmo discurso foi adotado no início da tecnologia.

“Desenvolvemos carros conceitos para várias montadoras apresentarem às matrizes, mas sob desconfiança de todos os lados. Hoje a montadora pode fazer um flex muito bem sintonizado para pegar o melhor consumo de etanol e de gasolina”, compara.

O engenheiro, inclusive, acha que o flex não é só viável para o Brasil. Como deveria ser uma solução referência exportada para o mundo.

“Se tivéssemos um plano de metas que não mudasse em função de governo, o flex permitiria uma migração para 100% de uso de etanol sem precisar mexer nada na frota. É uma questão da disponibilidade do combustível e abre uma possibilidade de fazer uma transição energética sem comprometer nada”, defende.

3- É possível pensar na exportação da tecnologia flex a outros países emergentes?

Graças à alta capacidade de plantio de cana e produção de álcool, obviamente o Brasil consegue popularizar com mais facilidade o motor flex. Porém, já há movimentos de outros países, como Índia, Vietnã e Indonésia, para adotar a tecnologia bicombustível.

A própria Toyota apresentou o Corolla Hybrid, o primeiro híbrido flex do mundo, em uma missão recente à Índia. O país vai iniciar a comercialização do flex E5 (5% de etanol anidro adicionado à gasolina), para depois migrar para E10 e, posteriormente, E20.

“O carro híbrido flex tem todas as vantagens ambientais, de facilidade de produção e pelo fato de a indústria já estar pronta. O Toyota Corolla é o melhor exemplo. O ganho em descarbonização é imediato”, diz Paulo Pêgas.

“Quando se consegue mostrar para uma Índia, país que tem problema de matriz energética, a capacidade tecnológica do flex, é mais uma prova de que não se trata de uma jabuticaba”, afirma Erwin Franieck.

4- O flex vai alavancar ou atrasar a inserção do Brasil no contexto global da mobilidade descarbonizada?

O discurso ambiental na defesa do flex ganha mais força quando se fala do híbrido que trabalha com etanol, gasolina ou a mistura dos dois. O raciocínio é que a tecnologia é um caminho mais curto e viável rumo à descarbonização.

Até pelas vantagens já citadas aqui. O etanol é um combustível que polui menos e renovável e com larga produção no país. Ao mesmo tempo, a matéria-prima para as baterias dos motores elétricos dos conjuntos híbridos também está disponível no Brasil.

“Temos capacidade, tecnologia, mão de obra e matéria-prima para não exportar o minério in natura, mas sim para agregar valor à cadeia e desenvolver baterias. Falta organização e planejamento, e o Brasil está esperando o mercado chegar aqui. O pensamento do país que está errado”, desabafa Erwin, da SAE.

“O caminho mais curto é um híbrido flex. Tem funcionado muito bem com a Toyota. Já temos a tecnologia e basta desenvolver o híbrido. Isso é possível até nos veículos importados que são produzidos com motor flex”, lembra Garbossa, da ADK.

5- Célula de combustível a etanol é abstração tecnológica ou possibilidade real?

Em 2016 a Nissan apresentou uma versão da sua van NV200 movida a hidrogênio, mas na qual as células de combustível são alimentadas por um motor a etanol. O veículo seguiu para o Japão, onde está em testes desde então, e em 2021 a Nissan retomou uma parceria com a Unicamp sobre o tema.

Neste caso, a água é extraída do etanol e uma combinação entre o hidrogênio e o oxigênio do ar produz uma reação química que vai gerar a energia elétrica para movimentar o motor. Isso tudo emitindo apenas… água. 

O projeto, obviamente, tem desafios. Um deles é o tamanho do reformador - que capta o etanol para transformar em elétrons - e o outro é o tempo para o sistema começar a operar.

Porém, as vantagens são infinitas. Dispensaria a complexidade de se ter tanques de hidrogênio em postos, além da questão da autonomia.

“Eu acredito nesta solução muito por um dado: o processo gera o dobro da eficiência média que um motor a etanol normal. Se a média fosse de 10 km/l, passaria para 20 km/l, por exemplo. Só aí já se tem um ganho de redução de custo na transformação de energia”, acredita Erwin.

“Neste contexto, o híbrido seria ponto intermediário. Acho que o caminho é esse: primeiro, híbrido flex, e depois o hidrogênio a partir do etanol como soluções dentro da realidade brasileira”, conclui Paulo Pêgas. 

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